Acusados de serem feiticeiros e abandonados pela família, Mbapé e Jane foram acolhidos no centro Frei Giorgio Zulianello, onde convivem com uma centena de outras crianças e jovens vítimas de maus tratos ou em situação de vulnerabilidade.
É dificil saber exatamente quantas crianças são abandonadas, espancadas ou mortas devido às crenças no feiticismo, profundamente enraizadas em Angola, sobretudo em algumas regiões mais tradicionalistas como a província do Zaire, na zona de fronteira com a República Democrática do Congo, outro país africano onde estas práticas subsistem.
“Acreditam muito na feitiçaria e tudo aquilo que não conseguem explicar atribuem ao feiticismo. As crianças que nós temos, que foram acusadas, passaram mal no seio das suas famílias, apanharam, foram alvo de violências verbais, físicas. E houve até um caso em que tentaram tirar a vida da menina metendo fogo num pneu”, relata Filipe Songo, educador social do centro, localizado em Mbanza Congo.
Ali se juntam crianças acusadas de feitiçaria, casos de abandono e fuga à paternidade, vítimas de violência familiar e há até quem tenha escapado a redes de tráfico de seres humanos, facilitadas pela proximidade da fronteira.
Para ser acusado de feiticeiro não é preciso provas, basta um acontecimento fatídico fortuito. A morte de um familiar — até a própria mãe, durante o parto — pode ser suficiente para acusar a criança, levando-a a ser ostracizada e afastada da família e da comunidade.
“Aqui acreditam muito que, se alguém morre, há uma explicação. Alguém matou esta pessoa. Então tentam sempre encontrar alguém que fez com que o outro perdesse a vida. Temos até casos de crianças pequenas em que a mãe perdeu a vida no parto e atribuem a culpa ao menino porque ele é que comeu a mãe. Dizem comeu. Nunca dizem matou”, explica o responsável interino do centro.
Mas há também quem seja acusado por perturbar os sonhos, por se transformar em animal ou voar em vassouras, por características físicas especiais, por doenças mentais, por ser inteligente, por ter capacidades extraordinárias ou comportamentos diferentes.
Muitos familiares são induzidos a reforçar estas crenças por pastores de igrejas ou ‘kimbandeiros’ (alguém que faz feitiços) da aldeia que os convencem da malignidade das crianças que chegam elas próprias a acreditar que são bruxas.
“São Igrejas que às vezes esquecem daquilo que é o foco delas, que é a paz social (…). Muitas Igrejas ao invés de pregar Jesus Cristo pregam mesmo feiticismo e os fiéis creem naquilo que o pastor diz e atacam as crianças que não conseguem se defender”, nota Filipe Songo.
As curas podem passar por rituais de purificação que envolvem castigos corporais e podem chegar à morte.
“Eu não sabia que era feiticeiro até ele me queimar cabeça”, conta Mbapé (nome fictício), olhos cabisbaixos e corpo franzino que não condiz com os seus 13 anos, no centro desde 2022.
“Ele” é alguém que tomou conta de Mbapé quando este foi abandonado pela mãe, pouco depois de ter chegado a Luanda.
“Depois de três dias começaram a me acusar de feiticeiro. O [meu] padrasto começou a dizer que o filho dele já não andava mais a dormir bem e que todo o dia ficava doente”, contou à Lusa.
O rapaz diz que a mãe começou por defendê-lo, mas a pressão da vizinhança foi maior e acabou por se decidir a abandoná-lo no Luvo, localidade próxima da fronteira com a RDCongo.
É aí que Mbapé conhece um jovem que o iria “passar para o outro lado” e com quem vive até 2021, até enfrentar novas acusações.
“Os vizinhos dele começaram a me acusar porque tinham ouvido que a minha mãe me abandonou. Depois disso ele já não me gostava mais”, lamenta.
Um dia, Mbapé é acordado repentinamente com papéis a arder na cabeça “para falar a verdade se era feiticeiro ou não”. Novamente abandonado, acaba na rua “a viver com uns meninos” até ser encontrado pelas autoridades que o encaminham para o centro onde atualmente se encontra.
A história de Jane é quase igual. Tem 17 e um rosto formoso e juvenil, a despontar para a maioridade.
Chegou há um ano, depois de “algumas complicações familiares”.
Morava com a “mãe grande” (tia) em Luanda e foi enviada para o tio, em Mbanza Congo, que a recebeu já “mentalizado” das acusações de feitiçaria “que espalhou pelo bairro”.
Sob a pressão social Jane acaba expulsa pelo tio: “ele disse que não queria mais me ver, para me esquecer que não sou mais da família dele, que não me conhecia. Fiquei triste, chorei muito, não sabia onde ir”.
Jane, com 200 kwanzas (20 cêntimos) no bolso, procura um motoqueiro e vai sozinha à procura de uma “tia”, que não chega a encontrar. Com o cair da noite, acaba por ser o próprio motoqueiro que a entrega no comando da polícia, onde ficará um mês, sem denunciar o tio.
Na origem das acusações estavam “coisas más que aconteceram” quando esteve em Luanda e que não gosta de lembrar, preferindo sonhar com um futuro melhor quando terminar os estudos.
“Gostava de fazer muitas coisas, gostava de ajudar crianças que precisam de ajuda, ou construir um lar ou uma escola ou uma farmácia, ou adotar alguém para eu criar”, adianta à Lusa, esboçando já um sorriso.
O Centro de Acolhimento Frei Giorgio Zulianello promove a reinserção nas famílias e trabalha na sensibilização das comunidades, com apoio dos seus parceiros da World Vision.
“Fazemos questão de partilhar a mensagem de que as pessoas são diferentes, que as crianças têm curiosidades e apresentam características diferenciadas umas das outras. Que nem tudo se explica com o feiticismo”, explica Filipe Songo, salientando que se tenta mostrar aos progenitores que os comportamentos associados ao feiticismo podem ser algo especial ou “um caso de talento”.
Mas nem todos os casos são de sucesso e é preciso garantir que a criança não fica em risco de vida ou não sofrerá novos maus tratos ou abandono, caso regresse à família.
“Talvez o que chamamos de feitiço é talento para fazer coisas especiais, coisas que se calhar muita gente não é capaz de fazer. Então, se a criança tem a habilidade de fazer alguma coisa, esse talento é uma coisa que Deus lhe deu”, comenta o educador.
Fundado em 2007, por membros da Ordem dos Frades Menores Capuchinhos, entre os quais Giorgio Luzianelo, que deu o nome à instituição, o centro é gerido em conjunto com o governo provincial do Zaire e funciona atualmente em instalações precárias, claramente insuficientes para acolher as 100 crianças entre os 3 e os 17 anos que ali encontraram uma nova família que lhes dá o carinho e cuidados que não encontraram na de sangue.
Lusa