Os sinais da colonização portuguesa perpetuam-se no presente como feridas abertas, tanto ou mais quanto permanecem cristalizados numa versão romantizada, sendo cada vez maior a urgência de entender que foi um projeto de opressão de muitos povos.
As escritoras Djaimilia Pereira de Almeida e Gisela Casimiro, os artistas Ângela Ferreira e Francisco Vidal, o curador e investigador Nuno Crespo, à semelhança de outros criadores ouvidos pela agência Lusa, confluem para a necessidade de trazer à história dominante a história dos oprimidos, mostrar que o colonialismo português foi tão violento como qualquer outro, reparar os danos de séculos desde os livros de escola, “reverter o sofrimento, ainda que tal requeira sofrer.”
“Não vamos evoluir se continuarmos a pôr na mesa que connosco foi diferente do que foi com os outros” colonialismos, garante a escritora e ‘rapper’ Telma Tvon, autora de “Um preto muito português”, que vê nas artes e na Cultura, a possibilidade de “pôr o dedo na ferida”, falar do que se não ousa falar.
O ensaísta Eduardo Lourenço apontou o “Colonialismo como nosso impensado” no volume de ensaios escritos ao longo de décadas, desde os anos da ditadura, em que fez a “crítica da mitologia colonialista” e abordou também as “heranças vivas” desse passado presente.
Portugal revela-se “em toda a sua complexidade” através do colonialismo, escreveu o ensaísta no prefácio à primeira edição da obra, publicada há dez anos, e agora retomada “revista e aumentada”. Aqui aborda “o supremo pecado do racismo”, confronta a realidade colonial com a sua mitologia, explora as suas contradições e expõe “este espantoso silêncio” de um país que, “pela maior parte da sua história, se construiu por fora, evitando assumir […] o que era por dentro.”
Artistas visuais como Ângela Ferreira, Francisco Vidal e Zia Soares têm abordado a violência desse silêncio nas suas obras, em instalações como “Amnésia” (1997), “A tendency to forget” (2015) e “Fanun ruin” (2022).
Ângela Ferreira, nascida em Moçambique e a residir em Portugal desde os anos 1990, considera que Portugal só conseguirá “descolonizar as mentes, a cultura e a sociedade”, quando conseguir “ultrapassar as dificuldades” que tem tido em refletir sobre o seu passado colonialista, incluindo o relato dos Descobrimentos.
“O cerne do problema é não termos trabalhado a descolonização das nossas mentes e da nossa sociedade”, declarou à agência Lusa a propósito de um tema que nos últimos anos tem tido cada vez mais atualidade, nomeadamente através de devoluções de obras de arte e artefactos de nações colonizadas por países como França, Reino Unido e Bélgica.
Na mesma linha, o artista plástico e performer Francisco Vidal, nascido em Lisboa, filho de pai angolano e mãe cabo-verdiana, disse estar convicto que as marcas do passado colonial português “continuam vivas” em ideias, emoções e ações, e defendeu que “descolonizar o pensamento contemporâneo português” continua a ser importante.
“Temos de fazer isto, passados 50 anos, porque ainda há marcas vivas e ativas”, assegurou o artista plástico nascido em 1978, já depois da Revolução dos Cravos, dando exemplo do assassinato do ator Bruno Candé, em 2021 em pleno dia, por um ex-combatente da guerra colonial, que foi acusado e condenado por crime de ódio racial.
A artista angolana Zia Soares criou a ‘performance’ “Fanun ruin”, apresentada em 2022, em Lisboa, que teve como ponto de partida uma coleção de 35 crânios timorenses, do Departamento de Antropologia da Universidade de Coimbra.
“Fanun ruin” (“Chamar ossos”, tradução do tétum para português) teve como objetivo, segundo a artista, prolongar a reflexão sobre o passado colonial e o seu impacto no presente, em torno de questões de memória, identidade e luto.
A criadora, que trabalha em Portugal, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe, lançou em palco, com frontalidade, uma série de questões: “Como eram os rostos dos decepados? Onde estão os restos dos corpos? Quando retornam os ossos usurpados? Quem os espera? Quem ainda se lembra? Quem quer esquecer?”.
A escritora Djaimilia Pereira de Almeida, nascida em Angola, representante de uma literatura sobre raça e identidade, de que se destacam os romances “Esse cabelo” e “Luanda, Lisboa, Paraíso”, afirma igualmente a evidência de que os sinais da colonização se perpetuam no presente, e de tal forma que prefere chamar-lhes “feridas abertas”, encarando o seu trabalho como o da “reescrita da História, na medida escassa” em que lhe é possível.
“Era bom que o que escrevemos nos livros pudesse mudar o rumo das coisas, mas ainda assim sinto-me confiante de que parte do que importa fazer é um trabalho coletivo no sentido dessa reescrita, no sentido não apenas artístico como cívico”, defende.
Sobre a ideia de o colonialismo português ter sido mais brando do que os demais, a escritora rejeita-a por completo, afirmando que “não há colonialismo sem violência” e que se trata apenas de “um mito, no qual alguns insistem em acreditar.”
Ideia semelhante tem a escritora, ativista e artista Gisela Casimiro, nascida na Guiné-Bissau, para quem esse tema “não está aberto a discussão” e, se houvesse uma hierarquia do colonialismo, “Portugal estaria em primeiro ou nos lugares cimeiros”, facto amplamente documentado.
“Infelizmente persiste uma ideia cristalizada, demasiada desinformação e romantização do colonialismo. As pessoas recusam esse legado colonial ou encontram justificação para o que não tem”, defende a autora de “Estendais”, considerando que a “fantasia” e o “imaginário coloniais” partem da “superioridade própria e da subjugação e infantilização do outro”, que não é real, mas “algo que as pessoas aprenderam nos livros de História, que até hoje não foram atualizados com a verdade.”
As mentalidades também não. Conta Telma Tvon: “Quando vou a Angola sinto que os portugueses têm uma presença com uma mentalidade muito colonizadora. Têm uma postura ‘eu vim mostrar-vos como se faz’, ‘eu mando nisto’. ‘Nós, portugueses, é que vos vamos ensinar a viver e a estar, dentro da vossa proporia terra’.”
“Também vejo isso aqui em Portugal, no dia-a-dia”, prossegue a ‘rapper’, licenciada em Estudos Africanos. “Eu vivo aqui, posso dizer se vejo algo mal, a primeira coisa que me dizem é que eu não sou daqui. [Mas] estou aqui porque abriram o caminho. Estão tão felizes pelos Descobrimentos – entre aspas -, essa glória, mas esquecem-se que Diogo Cão e todas essas pessoas é que abriram caminho para eu estar aqui.”
O investigador Nuno Crespo, diretor da Escola das Artes da Universidade Católica do Porto (UCP), defende que, passados 50 anos sobre o 25 de Abril, “há ainda um enorme trabalho a fazer, não só na abordagem ao processo de colonização e ao de descolonização, mas também de integração das outras comunidades na nossa própria comunidade atual.”
Nuno Crespo, que falava à Lusa quando da abertura do ciclo “Não foi Cabral: revendo silêncios e omissões”, concluído esta semana, assegura: “Temos muito pouca consciêcia da maneira tão violenta como o projeto colonial português foi desenvolvido.”
Lusa