Terça-feira, 12 de Novembro, 2024

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Migrantes africanos e asiáticos em Beirute receiam ser os esquecidos desta guerra

Migrantes africanos e asiáticos sentem-se no fim da linha entre os largos milhares de deslocados em Beirute, expressando o receio de ficarem ao abandono e sem destino, depois de muitos terem já enfrentado redes de tráfico humano e escravidão.

Migrantes africanos e asiáticos em Beirute receiam ser os esquecidos desta guerra

A igreja católica de São José, erguida no final do século XIX como uma extensão da diocese maronita de Beirute, acabou por surgir como uma saída para uma pequena parte destes migrantes desde que as forças israelitas desencadearam, há duas semanas, uma operação em grande escala no sul do Líbano e nos subúrbios da capital libanesa contra o grupo xiita armado Hezbollah, forçando mais de 1,2 milhões de pessoas a abandonar as suas casas, segundo números das autoridades nacionais.

A maioria deste contingente de deslocados é formado por cidadãos libaneses das regiões mais atingidas pelos raides aéreos das forças israelitas e pelos combates no decurso da invasão terrestre que iniciaram no dia 01 de outubro, mas também por dezenas de milhares de refugiados sírios que tentam agora voltar ao seu país, apesar de mais de uma década de guerra civil, e ainda migrantes asiáticos e africanos que ficaram sem lugar para onde ir.

Quando a guerra se intensificou, a partir de 23 de setembro, após um ano de trocas de tiros diárias entre Israel e o Hezbollah ao longo da fronteira israelo-libanesa, cerca de 20 famílias, num total de 65 pessoa, encontraram, porém, acolhimento na Igreja de São José, em Achrafieh no norte da cidade, onde atualmente funciona o abrigo para deslocados migrantes, gerido pelo Serviço Jesuíta aos Refugiados (JRS, na sigla em inglês).

Foi justamente em 23 de setembro que uma mulher do Sri Lanka, que se identificou mas cuja identidade, como de todos os migrantes que falaram à Lusa, é omitida para sua proteção, abandonou a sua residência em Dahieh, no lado oposto da cidade, correspondente ao imenso subúrbio sul controlado pelo grupo xiita libanês, onde, no dia seguinte, um bombardeamento israelita eliminou o seu líder histórico, Hassan Nasrallah.

“Foi aliás um homem do próprio Hezbollah que nos disse para fugir do bairro”, recorda a trabalhadora doméstica de 56 anos, residente com a sua filha no Líbano há vinte.

Apesar da situação caótica que se instalou, com a debandada de uma grande parte da população estimada de 750 mil habitantes de Dahieh para zonas mais seguras no centro de Beirute e noutras regiões do país, acabou por encontrar um teto nesta igreja, depois de ter sido recusada em várias das cerca de mil escolas convertidas em centros de deslocados por não ser libanesa.

Já vivia no Líbano quando se deu o último conflito entre Israel e o Hezbollah, em 2006, mas na altura não saiu de Dahieh, que tem sido bombardeado todos os dias nas passadas duas semanas: “Esta guerra parece-me pior, não consigo explicar, tenho muito medo das explosões. Mas agora, quando as oiço longe, fico muito feliz por estar aqui”, descreve, embora reconhecendo que ignora como esta crise vai terminar, bem como o passo que dará a seguir

Outra migrante em Dahieh conta ter recebido igualmente a visita de um militante do Hezbollah a pedir-lhe para abandonar a sua casa. Natural do Bangladesh, onde deixou duas filhas, a mulher de 35 anos divide-se entre trabalhos domésticos e um restaurante e se pudesse escolher, gostaria de continuar a viver no Líbano.

“Tenho uma opinião pior sobre o Bangladesh”, lamenta, sentada numa cadeira à sombra de uma varanda em pedra do complexo religioso, com vista para o jardim, isolada do ruído constante de Beirute, uma cidade com lotação esgotada para a avassaladora de deslocados que chegam a dormir nas ruas, nas praças e até nas praias.

A migrante chegou ao Líbano há 15 anos em busca de um salário melhor, mas, desde que a guerra lhe rebentou à porta, já nem sabe se terá uma casa para a receber de novo em Dahieh ou se conseguirá prosseguir o seu plano de vida, num drama partilhado com muitos outros estrangeiros nas mesmas circunstâncias.

“Estas pessoas estão debaixo de grande pressão e mentalmente muito frágeis. Muitas perderam famílias, casas e trabalho, não sabem o que fazer e precisam de ajuda. Eu tento fazer alguma coisa por elas, de algum modo e dar-lhes força, nem que seja a cozinhar”, conta uma migrante voluntária, que se reúne numa conversa terapêutica com um grupo de mulheres naquela varanda da Igreja de São José.

O futuro está sempre na ponta da língua, tal como o receio de que a situação se descontrole a tal ponto no Líbano que não lhes reste outra solução a não ser o regresso aos seus países, se conseguirem, e “recomeçar tudo de novo do zero”.

Voltar a Cartum não é todavia uma opção que se coloque a um ativista de direitos humanos sudanês com estatuto de refugiado no Líbano, onde se mantém afastado de uma violenta guerra civil e uma das maiores crises humanitárias no continente africano.

“Isto é um problema sério. O meu país está em guerra e dividido em dois e aqui… enfim estou aqui”, desabafa o refugiado, observando que no Sudão “a luta faz-se com [armas de assalto] Ak-47 e aqui usam bombas de três toneladas”, numa alusão aos ataques aéreos israelitas e às profundas crateras abertas pelas explosões no sul do Líbano e nos arredores de Beirute, num conflito que, de acordo com as autoridades libanesas, já matou mais de duas mil pessoas num ano, das quais mais de metade nas últimas semanas.

O refugiado conta que, antes de a guerra se abater de novo sobre o Líbano, tentava “viver uma vida boa” como segurança numa empresa, emprestando o seu ativismo à comunidade africana residente no país, apesar de se queixar da corrupção e das redes de exploração de migrantes e ainda de “um longo caminho a percorrer” em matéria de direitos humanos e combate ao racismo.

“No entanto, apesar de tudo, gostamos deste país, gostamos de passar o nosso tempo aqui e ninguém, de nenhuma nacionalidade, devia viver um período tão triste como este. Não devia acontecer em lado nenhum do mundo, porque só a nossa casa é um lugar seguro e pacífico”, declara o homem sudanês, que pretende abandonar Beirute “para qualquer lado, o mais depressa possível”, sentindo que, neste momento, está por sua conta.

Nas últimas vários países europeu, incluindo Portugal, enviaram aviões ou embarcações para Beirute para repatriar os seus cidadãos que pretendiam partir, mas também o Brasil, os Estados Unidos, a Austrália, a Coreia do Sul ou a Rússia, após quase todas as companhias aéreas internacionais terem interrompido por tempo indeterminado as suas ligações com a capital libanesa.

A maioria dos estrangeiros asiáticos e africanos provenientes de países com recursos modestos não têm a mesma sorte e “também não têm dinheiro nem documentos legais” e, na verdade, “muitos até já queriam partir antes da guerra”, adverte Michael Petro, um jesuíta que dirige o centro de migrantes do JRS na Igreja de São José.

Num país que “não é bom para migrantes”, o jesuíta norte-americano de 29 anos relata a existência de redes de tráfico humano a operar impunemente no país, que se aproveitam dos mais vulneráveis para exploração sexual e trabalho escravo, e casos de pessoas que se sentiam abusadas mas que iam ficando no Líbano desde que tivessem emprego e dinheiro, e até de libaneses que se colocavam em risco por ajudarem esta população frágil.

Todo este quadro sofreu uma alteração radical com a deslocação da força de trabalho, o comércio encerrado, campos agrícolas abandonados e turismo paralisado desde o começo da guerra, após sucessivas crises de um paus que, em cinco anos, experimentou um colapso financeiro, uma desvalorização vertiginosa da sua moeda, as grandes explosões no Porto de Beirute e ainda a pandemia de covid-19.

O centro de abrigo de migrantes da Igreja de São José, o primeiro do género em Beirute, divide-se em dois pisos, um para as mulheres e cerca de 20 crianças e o outro para os homens, e, apesar da quase inexistência de católicos, há uma sala de culto budista e também para muçulmanos e hindus e ainda um campeonato de críquete, num “ambiente de concórdia entre todos”, segundo Michael Petro, mas a guerra veio adicionar necessidades que precisam de apoio ou “o projeto deixará de ser sustentável”.

Lusa

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