Um gesto altruísta de dois jovens angolanos revelou que há, em Luanda, “verdadeiros papões de livros”, que diariamente acorrem a uma biblioteca livre, criada debaixo de uma via pedonal, no município de Viana.
A iniciativa, denominada “Leitura Grátis”, é de Arante Kivuvu e Francisco Mapanda “Dago Nível”, o primeiro detido com outros 16 ativistas por estar a ler um livro, no conhecido processo 15+2, e o segundo por considerar em tribunal que o julgamento era “uma palhaçada”.
Em declarações à agência Lusa, contaram que o projeto tem mais de uma semana, e surgiu com a necessidade de se reinventarem nesta fase da pandemia do novo coronavírus, quando começaram por vender cigarros naquele local.
“Estávamos a vender debaixo da pedonal, vínhamos com os nossos manuais, e no momento que vendíamos, líamos e fazíamos algumas discussões sobre o manual que líamos”, disse Arante Kivuvu, salientando que a situação despertou interesse de outras pessoas.
Segundo Dago Nível, no primeiro dia levaram 14 livros que, de imediato, ficaram nas mãos dos ávidos leitores. Por isso, decidiram pegar em todas as obras que cada um possuía e hoje, com as doações que recebem, já somam mais de 400 livros que são carregados diariamente para aquele espaço.
Arante Kivuvu garante que o local é bastante frequentado, recebendo crianças, jovens e adultos, mas não tem dados estatísticos porque o projeto não segue os formalismos de uma verdadeira biblioteca.
“A nossa biblioteca é despadronizada, fora do normal, ou seja, as bibliotecas convencionais têm uma lista de presença, onde as pessoas põem os números, têm na verdade, um número de burocracia e nós nos despimos disso”, disse Dago Nível.
Para Dago Nível, o mais gratificante e reconfortante é ouvir os comentários das pessoas em relação à iniciativa, lembrando que “bibliotecas e livros estão mais distantes das pessoas a cada ano que passa”.
O ativista fala da relação existente entre a pedonal e as pessoas, frisando que o projeto vem agregar mais valor a isso, quebrando tabus e desfazendo preconceitos, entre os quais “que os jovens angolanos não gostam de estudar, de ler”.
“Se as pessoas antes vinham para a ponte apenas para fumar um cigarro, beber whisky ou fazer coisas menos boas, hoje vêm e encontram livros como alternativa”, disse Dago Nível, realçando que “a biblioteca despadronizada está a provar o contrário”.
Localizada entre uma estrada e uma linha de ferro, o barulho ensurdecedor do local, frisou Dago Nível, não atrapalha a concentração dos leitores, que antes das 7:00, hora em que abre o espaço, já estão perfilados para lerem um livro.
“Parece que as pessoas quando pegam no livro, entram no livro. Como se diz: quem escreve um livro constrói um castelo e quem lê um livro vive dentro dele, bloqueando todo o barulho que vem, seja do lado da estrada, seja da linha férrea”, referiu.
Arante Kivuku recorda uma cena marcante: uma criança que declarou estar há seis meses sem ler um livro, desde que foram suspensas as aulas devido à covid-19.
“Quando a biblioteca abriu, no mesmo dia, o menino terminou de ler um livro de 30 páginas e ficou contar-nos aquilo que entendeu no livro”, disse Arante Kivuvu, lembrando também Dago Nível que uma jovem conseguiu em 15 minutos ler o livro “Avozinha Gangster”, que por sua vez recomendou ao irmão.
“Há pessoas a lerem mais de um livro por dia, na verdade, estamos a descobrir verdadeiros papões de livros”, disse Dago Nível, realçando ter observado que as pessoas estão sedentas por ler livros sobre questões políticas e ligados à ciência política, mas também de autoajuda.
“Parece que há uma sede das pessoas perceberem por dentro como funciona a política, de perceberem mais sobre os seus direitos, deveres e isso tem sido uma constatação factual”, disse.
Sem qualquer apoio das autoridades, apenas solidariedade das pessoas, os ativistas contaram que tiveram de recorrer ao lixo para “construir” a biblioteca, transformando pneus em bancos para os leitores e recuperando malas de viagem que lhes servem agora para guardar e transportar os livros.
“Nesse momento, estamos a receber muitas solicitações, como no Camama, Rangel, Sambizanga, no Namibe, na Huíla, há pessoas que estão também com intenção de criar a biblioteca despadronizada. A nossa responsabilidade está a ser acrescida. Não idealizamos um projeto como tal, mas agora há necessidade disso”, frisou Arante Kivuvu.
Sobre a ligação do projeto ao processo 15+2, relativo a 17 ativistas angolanos presos em 2015 quando debatiam um livro e acusados de prepararem um golpe de Estado contra o Governo do MPLA do então presidente, José Eduardo dos Santos, ambos consideraram mera coincidência, lembrando que o amor aos livros pelos dois é grande.
No momento da reportagem, Ladislau Costa fazia a doação de quatro obras, solidário com a iniciativa e a paixão que tem por livros.
“Temos escassez de biblioteca e não obstante a escassez, há burocracia e formalismo. O que os jovens fizeram aqui, deram uma abertura para aliviar o sofrimento que muitas pessoas têm passado com o confinamento e também com a dificuldade de aceder a um bom livro para leitura”, salientou.
Em declarações à Lusa, leitores congratularam-se com o projeto, que ocupa tempo aos jovens e aproxima as pessoas, como afirmou Domingos Kanjila, de 23 anos, há três dias frequentador do espaço.
“Já li três livros, é uma iniciativa muito boa, já que as bibliotecas aqui no bairro estão muito longe da população, isso motiva os jovens a terem o hábito de leitura e permite adquirir novos conhecimentos”, afirmou, acrescentando que tem lido sobretudo de forma virtual, já que o acesso ao livro físico é raro devido aos preços elevados.