O mundo celebra, esta segunda-feira, o Dia Internacional da Criança, sob o espectro do medo dos ajuntamentos sociais imposto pela pandemia da Covid-19, doença que, há seis meses, teima em colocar a humanidade literalmente de “sentido”.
O 1 de Junho foi festejado, pela primeira vez em 1950, como Dia Mundial da Criança.
Tornou-se, mundialmente, referência obrigatória no que toca a abordagens sobre os direitos da criança, sendo aproveitado pelos Estados para publicitarem ações a favor do bem-estar dos petizes.
Ao contrário do que vem sendo habitual, este ano o 1 de Junho é comemorado sem o ambiente festivo característico, ou seja, sem festas, sem bailes e sem brindes.
À semelhança de milhares de adultos, que evitam as ruas para fugir da nova família de coronavírus, as crianças têm de escolher, em 2020, entre o sonho das festas e a razão.
Por mais difícil que seja, o Dia Internacional da Criança será vivido sem o brilho característico e sem actividades de massa, em praticamente todos os cantos do Planeta Terra.
A efeméride é celebrada numa altura em que a Organização Mundial da Saúde (OMS) estima haver mais de seis milhões de infectados pelo coronavírus (mais de 300 mil mortos), entre elas, infelizmente, crianças menores de um ano e adolescentes.
O surgimento da Covid-19 impôs um novo paradigma no funcionamento das sociedades, cuja prioridade passou a ser, actualmente, o combate à pandemia, sem margens de manobra para celebrar, publicamente e com pompa, o que quer se seja.
A necessidade de combate incessante à Covid-19 está no topo da agenda mundial, com centenas de países a lutarem pela “sobrevivência”, pondo, ainda que temporariamente, os festejos do já tradicional Dia Internacional da Criança fora das prioridades.
Diante desse quadro, os petizes, considerados o futuro das nações, veem, este ano, o 1 de Junho como apenas uma marca, ou seja, um ponto de referência no calendário.
Assim, pais, encarregados de educação e governos de todo mundo, principalmente os que defendem as garantias e os direitos das crianças, concentram esforços no combate à pandemia, relegando para um futuro breve celebrações públicas em prol dos petizes.
Com esse cenário, preocupante e desolador, as deslocações aos largos, parques de diversão, pátios escolares e de creches, para celebrar a data, devem dar lugar a um movimento de reflexão mundial, quase silencioso, em torno dos grandes desafios da criança.
Em Angola, a data ocorre numa altura em que ainda são grandes os desafios em prol da criança, com violações sistemáticas dos 10 compromissos assumidos pelo Governo.
À luz da Constituição da República, a criança tem protecção absoluta, cabendo-lhe, entre outros, os direitos à atenção especial da família, da sociedade e do Estado.
A ela deve ser dada proteção contra todas as formas de abandono, discriminação, opressão, exploração e exercício abusivo de autoridade, na família e em outras instituições.
O Estado garante também a salvaguarda do superior interesse da criança nas políticas públicas, como forma de garantir o seu pleno desenvolvimento físico, psíquico e cultural, bem como proíbe o trabalho de menores em idade escolar.
Para tal, Angola criou, em 2011, os “11 compromissos com a Criança”.
Adicionalmente, o Parlamento aprovou a Lei 25/12 de 22 de Agosto, Lei Sobre a Protecção e Desenvolvimento Integral da Criança, para materializar o princípio constitucional que consagra o “Direito Fundamental” dos menores.
O país cumpre com a Declaração Universal dos Direitos da Criança de 1959, a Convenção dos Direitos da Criança de 1989, e a Carta Africana sobre os Direitos e o Bem-Estar da Criança de 1990.
Entretanto, apesar de toda uma gama de instrumentos jurídico-legais, a realidade é que, em Angola, a criança ainda atravessa vicissitudes gritantes.
Em muitas partes do país, continua a haver casos de abusos e de violação de crianças, inclusive perpetrados por pessoas próximas, como pais e encarregados de educação.
Infelizmente, ainda é comum ver crianças acusadas de feitiçaria, o que tem provocado situações de justiça por mãos próprias da parte daqueles que têm a obrigação de velar pelo seu bem-estar.
Outro problema que as envolve e deve continuar na agenda das autoridades, sobretudo nesse dia em que se celebra essa importante efeméride, é a fuga à paternidade.
Se, por um lado, a legislação acautela o direito ao nome e à paternidade, a verdade, porém, é que, em Angola, centenas de progenitores continuam a esquivar-se da Lei, deixando milhares de crianças indefesas sem registo e sem condições de frequentar a escola.
Por isso, impõe-se que o Estado continue a trabalhar para o efectivo cumprimento das normas e dos instrumentos internacionais rubricados, pondo a situação da criança efectivamente na ordem do dia.
Não se pode continuar a assistir, impávidos, às gritantes violações aos direitos das crianças.
Doravante, tudo deve ser feito para protegê-las da exploração, dos abusos sexuais, da prostituição e de outras práticas que condicionam o seu desenvolvimento mental, sob pena de se poder vir a ter, num futuro não muito distante, uma sociedade marginal e sem instrução.
Afinal, as crianças são a maioria da população angolana, sendo um grupo social com necessidades específicas na sua fase de crescimento, que não devem ser ignorado, jamais.
É triste observar a condição de penúria por que ainda passam milhares de crianças em Angola, desprovidas de pão e água, sem tecto para morar condignamente, com sonhos destruídos por falta de instrução e de acompanhamento correcto dos progenitores.
Numa altura em que o país celebra mais um Dia Internacional da Criança, é importante que a sociedade acorde e veja, como os olhos de ver, a gritante situação de calamidade dos petizes.
Basta olhar para o estudo sobre a pobreza infantil apresentado pelo Instituto Nacional de Estatística, em 2018, para perceber a dimensão do problema.
Conforme esse estudo, três em cada quatro crianças com menos de 18 anos de idade não tem acesso a serviços essenciais para se desenvolver, nomeadamente nutrição, saúde, protecção infantil, prevenção da malária, educação, exposição aos meios de comunicação social, habitação, água e saneamento.
Até quando, essas crianças continuarão privadas de direitos básicos? Como poderão, assim, projectar o futuro, se a sociedade, no seu todo, continuar a fazer descaso dos seus direitos?
É, pois, chegada a hora de o país repensar a abordagem à volta da problemática da criança. Mais do que legislar, os angolanos precisam, de facto, de tornar efectivo o cumprimento das normas.
O Estado deve continuar a assegurar as condições para que as crianças tenham o básico para crescer com saúde e criar novas políticas para combater o fenómeno da criança na rua, principalmente nesse período de pandemia em que, ao relento, ficam bastante expostas.
Em suma, os desafios da criança em Angola são grandes e merecem respostas adequadas.
É importante que, daqui para frente, todos cerrem fileiras em prol desse ser desprotegido, para que possamos ter um futuro assegurado por homens sábios e instruídos, capazes de pensar Angola, como angolanos de facto, com patriotismo e sem visões distorcidas sobre África e os africanos.